Neste Dia Internacional das Mulheres, resgatamos uma importante entrevista que fizemos com a arquiteta e urbanista Silvia Lenzi para a publicação Grandes Nomes da Arquitetura Catarinense: Planejamento Urbano, lançada em 2014 pela Santa Editora em parceria com a AsBEA/SC.
Silvia é um referência na área e uma importante defensora da promoção da vida urbana. O tema permanece atual e merece ser relembrado para estimular a reflexão.
Confiante no potencial
Considerada sinônimo de planejamento urbano em Florianópolis, Silvia Lenzi acompanhou importantes mudanças na cidade. E foi protagonista de muitas delas em três décadas de dedicação ao IPUF.
Considerada sinônimo de planejamento urbano em Florianópolis, Silvia Lenzi acompanhou importantes mudanças na cidade. E foi protagonista de muitas delas em três décadas de dedicação ao IPUF. Desde 2010, a arquiteta e urbanista Silvia Ribeiro Lenzi não faz mais parte do Instituto do Planejamento Urbano de Florianópolis. Ao decidir pela aposentadoria, deixou de atuar no órgão que praticamente ajudou a criar e pelo qual enfrentou os mais diferentes e complexos desafios de sua trajetória profissional. De coordenadora de planejamento urbano à presidente e, mais tarde, como diretora de planejamento, foram 32 anos de carreira no IPUF. Silvia orgulha-se de iniciativas inovadoras, lamenta percalços, critica o desmantelamento do Instituto e a má gestão do Poder Público na condução do novo Plano Diretor, mas ela não deixa de acreditar em Florianópolis.
“A juventude está desiludida e não vê perspectiva. Eu vejo que ainda há muito potencial”, afirma. Com o olhar sempre voltado para a coletividade desde a época da faculdade, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a arquiteta tornou-se referência também para a iniciativa privada, especificamente para empresários que compartilhavam a mesma visão. Prestou consultoria para a implementação de empreendimentos de destaque em municípios vizinhos. “O empreendimento público privado tem que fazer bem a sua parte numa relação amigável com a cidade”, pontua.
ENTREVISTA
Quando a senhora decidiu cursar arquitetura, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, quais eram seus interesses?
Silvia Lenzi // Entrei na faculdade em 1972 sem saber muito bem o que iria encontrar. Eu sempre tive um forte interesse pelas questões sociais e da cidade, muito mais do que por projetos de arquitetura e o meu primeiro contato com o planejamento urbano aconteceu na Universidade. Muitos dos melhores professores tinham sido exilados ou deixaram de dar aulas em função da ditadura militar, então minhas escolas também foram a Prefeitura de Lages e o IPUF.
Essa preferência conduziu sua carreira desde o início da sua trajetória, certo?
Silvia Lenzi // Logo depois de formada voltei para Lages, minha cidade natal. O arquiteto Dirceu Carneiro era então prefeito e estava desenvolvendo um trabalho de mutirão habitacional. Fui até a Prefeitura me oferecer para participar desse mutirão e trabalhei durante três meses acompanhando as primeiras etapas da construção das casinhas. Ele tratava as políticas públicas de forma integrada e conseguia fazer toda a sua equipe sentir-se corresponsável pelo projeto. Essa visão integrada falta ainda hoje em muitas gestões públicas. Foi uma experiência muito rica.
E que a levou a Florianópolis…
Silvia Lenzi // Nesse meio tempo foi publicada uma matéria no jornal “O Estado” sobre esse projeto de mutirão em Lages e meu nome foi citado nessa reportagem. Esperidião Amin, então prefeito de Florianópolis, queria começar um projeto de habitação popular na cidade. Seu Chefe de Gabinete me conhecia e, através dele, fui chamada para uma entrevista. Era final de 1977.
Qual foi o primeiro projeto?
Silvia Lenzi // O meu primeiro trabalho em Florianópolis chamava-se Projeto Sapé, conjunto habitacional realizado em regime de mutirão destinado a famílias que ocupavam uma área atrás do Hospital Nereu Ramos. As famílias participavam, em conjunto com uma equipe de obras capacitada pelo Senai. Nos finais de semana, as mulheres iam ajudar na construção das suas casas e fazer o almoço comunitário. Foram executadas 139 unidades habitacionais através desse mutirão.
“UM ÓRGÃO DE PLANEJAMENTO NUNCA
É O ÚNICO RESPONSÁVEL,
MAS ELE PODE SER O
CATALISADOR DO PROCESSO.”
E assim iniciou sua trajetória no Instituto de Planejamento Urbano?
Silvia Lenzi // No dia que cheguei o IPUF estava fazendo um ano de sua criação. Mesmo sendo contratada para desenvolver projetos de habitação popular, como a equipe de técnicos do IPUF era muito reduzida eu acabei participando de todos os planos elaborados nesse período. Ao longo da minha estada no IPUF, até a minha aposentadoria em 2010, participei de inúmeros trabalhos nos quais a autoria individual se diluiu na troca de conhecimentos e nas proposições conjuntas com outros profissionais arquitetos e de outras áreas do planejamento.
Quais são as outras inovações?
Silvia Lenzi // Antes do Estatuto das Cidades, os planos diretores geralmente não ultrapassavam os limites do perímetro urbano. Nos primeiros anos do IPUF, fomos desenvolvendo vários planos para o interior da ilha e, com isso, Florianópolis passou a ter todo o seu território planejado. Participei de todos esses trabalhos, como técnica, algumas vezes na coordenação e, mais tarde, como diretora. No início da década de 80, o IPUF gerenciou o Programa Cidades de Porte Médio e com recursos do Banco Mundial. Na ocasião, fizemos um estudo regional e vimos que a maior parte dos equipamentos sociais se localizavam no centro da cidade. Através desse programa, começamos a descentralizar a localização desses equipamentos Programas com esse, com uma abordagem bastante ampla, incluindo também investimentos em infraestrutura urbana, sistema viário, projetos, criação de cooperativas de pesca, leite e artesanato, e programas habitacionais, nos levavam a novos aprendizados, como a montagem de processos para a captação desses recursos.
Parte do retorno dos investimentos compunha um Fundo gerido pelos prefeitos de Florianópolis, São José, Palhoça e Biguaçu. Como presidente do IPUF, eu era a secretaria executiva desse fundo. Algumas reuniões foram feitas para se discutir a aplicação desses recursos. Mesmo não sendo um montante significativo, oportunizou um exercício de gestão conjunta dos quatro prefeitos. Nos últimos anos, acabei me envolvendo, principalmente, com a gestão urbana nos cargos de direção que ocupei e na coordenação de um programa de Desenvolvimento Institucional do Programa Habitar Brasil/BID.
A senhora acompanhou mudanças importantes na cidade. Quais foram elas?
Silvia Lenzi // Hoje, com toda a demanda por participação popular, fica difícil imaginar que, em 1984, ano de discussão do Plano Diretor dos Balneários, tentávamos identificar associações comunitárias, mas havia muito poucas. Edison Andrino assumiu em 1986, como primeiro prefeito eleito da Capital, depois do Golpe Militar, e isso criou uma expectativa muito grande na cidade. Era um mandato de apenas três anos e todo mundo queria participar. Ele me chamou para presidente do IPUF e enfrentei o desafio.
Como passou a ser a rotina?
Silvia Lenzi // Havia dias em que eram realizadas de 10 a 12 reuniões simultâneas no IPUF. Recebíamos desde idosos reclamando da interferência da rede de alta tensão no sinal de TV de suas casas até grupo de surfistas querendo colaborar na fiscalização ambiental das praias. Além dos trabalhos de rotina, participávamos de projetos pioneiros, como a criação do Pólo do Vestuário e do Pólo Tecnológico. Firmamos um convênio com a Prefeitura do Rio de Janeiro para elaboração de projetos de contenção das encostas e efetuamos o primeiro levantamento do perfil das favelas de Florianópolis.
Quais outras áreas foram trabalhadas pelo IPUF?
Silvia Lenzi // O IPUF respondeu por várias áreas, como a ambiental, a habitacional, a de captação de recursos, a de mobilidade urbana (ainda sem essa denominação). E, na medida que essas demandas foram aumentando, exigiram a criação de estruturas próprias, como a Floram e a Secretaria de Habitação.
Teoricamente, com o IPUF atuante, a gestão seria facilitada para os próximos governantes, não?
Silvia Lenzi // Talvez o IPUF tenha criado algumas dificuldades para os prefeitos, pois as funções do instituto exigiam de sua equipe uma reflexão permanente sobre as questões urbanas e, muitas vezes, o parecer técnico confrontava com as decisões políticas. Essa postura gerou alguns impasses, mas entendíamos que, como integrantes de um órgão de assessoria, era esse o nosso dever.
E qual a realidade hoje?
Silvia Lenzi // Acho que o IPUF não está numa boa fase. Durante os últimos 10 anos, os funcionários mais antigos foram se aposentando e não houve contratação de novos técnicos. Esse esvaziamento do IPUF e a falta de diálogo com os técnicos que permaneceram e que vinham conduzindo os estudos do plano diretor, podem ter gerado uma ruptura do processo de planejamento.
E qual o histórico de relação com a iniciativa privada?
Silvia Lenzi // Na minha época, realizamos, além do tombamento dos conjuntos urbanos, tombamento de dunas, da Costa da Lagoa, da Lagoinha do Leste. Houve reação de alguns empresários e uma campanha foi montada com adesivos nos carros criticando os eco-chatos, mas, hoje em dia, é amplamente reconhecida a importância de preservação desse patrimônio.
Foi o caso da Habitasul, com a implantação de Jurerê Internacional nos anos 1980?
Silvia Lenzi // O plano de Jurerê Internacional tinha sido aprovado, mas a urbanização comprometeu as dunas e uma restinga, o que gerou um protesto bastante grande na cidade. Esse primeiro impacto foi seguido de uma gestão urbana eficiente, da recuperação e da preservação da vegetação da faixa de duna, da implantação de um adequado sistema de esgotos. O grupo Habitasul também executou o primeiro restauro de um prédio histórico privado no centro da cidade e foi o primeiro a usar o boi-de-mamão em suas campanhas publicitárias, valorizando assim a cultural local. Não se falava ainda em medidas mitigadoras e compensatórias, mas se pode dizer que, por iniciativa dos próprios empresários, aconteceu dessa forma.
Prova de que os tempos são outros está nos empreendimentos para os quais a senhora prestou consultoria: o Palmas do Arvoredo, em Governador Celso Ramos, e a Cidade Pedra Branca, em Palhoça, certo?
Silvia Lenzi // Influenciada pelas discussões geradas na 1a Oficina de Desenho, nesses dois empreendimentos a minha principal contribuição partiu de uma visão da importância dos espaços públicos de uso comum, entendendo a cidade como projeto coletivo resultante de inúmeras intervenções individuais. Para Palmas do Arvoredo, elaborei uma análise urbanística do empreendimento, de sua inserção no contexto regional, e apresentei um conjunto de recomendações voltadas, basicamente, para tratamentos em escala humana. Todas as recomendações reforçadoras da proposta urbanística existente. Na Cidade Pedra Branca, participei da equipe que elaborou o plano de urbanização, coordenado pelo arquiteto Hector Vigliecca. Posteriormente, a aplicação dos princípios do Novo Urbanismo no projeto da nova centralidade reforçou e detalhou algumas diretrizes já delineadas nessa proposta geral.
“OS PLANOS SÃO
APENAS UMA ETAPA
DE UM PROCESSO QUE
NÃO PODE PRESCINDIR
DE UMA BOA GESTÃO
E DE INVESTIMENTOS
PÚBLICOS E PRIVADOS.”
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“Florianópolis, como cidade de porte médio, apresenta condições para que sejam obtidos bons resultados com intervenções em seus sistemas urbanos. Para isso, é importante a definição clara de um modelo de cidade, amparado em um amplo pacto social que estabeleça as linhas de convergência das ações públicas e privadas na construção desse modelo. É preciso ultrapassar o estágio dos discursos emocionais para atingir um patamar de formulação de propostas baseadas num entendimento mais profundo da nossa realidade. O conhecimento sobre a cidade que vem sendo produzido pelos órgãos técnicos e, principalmente, dentro das universidades, tem que ser colocado a serviço dessas iniciativas. Cabe ao IPUF o papel de grande articulador de todos esses saberes em prol desse projeto coletivo.”
Silvia Lenzi
Arquiteta e urbanista
Foto: Ronald Pimentel | Santa Editora