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Arquitetura catarinense perde André Schmitt, “um desenhador urbano”

Por setembro 13, 2019setembro 14th, 2019No Comments

A arquitetura catarinense está de luto, assim como todos que conheceram e admiravam André Schmitt, um dos grandes nomes da arquitetura e do planejamento urbano. Com quase 50 anos de trajetória profissional, André faleceu nesta quinta-feira, em Florianópolis.

Ele estava internado no Hospital Baía Sul em coma, desde a semana passada, após complicações decorrentes de uma queda em casa, e faleceu no início da noite desta quinta-feira (12), conforme comunicado da AsBEA-SC.  O velório será na sexta-feira, dia 13h, das 12h às 16h, no Crematório Vaticano do Itacorubi.

André Schmitt era titular do escritório Desenho Alternativo, fundado em 1985 juntamente com Daniel Ceres Rubio, em continuidade à empresa individual criada por André  em 1977. Seu legado, contudo, está muito além da arquitetura. André era um visionário, disseminador de grandes ideias e um dos principais entusiastas pela qualificação da cidade. Foi secretário de Cultura de Florianópolis (1986-1988), responsável pela criação da Fundação Franklin Cascaes e pelo fechamento do vão do Mercado Público para o trânsito de veículos,  iniciativa que contribuiu para a consolidação do espaço como importante ponto turístico e cultural da cidade.

Comandou o emblemático projeto do Parque Metropolitano Dias Velho – Aterro da Baía Sul, vencedor de concurso público nacional, mas que nunca chegou a sair do papel. Era considerada uma proposta ousada, assim como o macro projeto do Jardim Botânico de Florianópolis (link para a edição 6 da ÁREA)com três estações pela cidade, que também não chegou a ser implementado.

Simplicidade.
Esta palavra representa a principal característica de André Schmitt. E serviu de título para a entrevista publicada na revista ÁREA em 2008 (link para a edição 4 da ÁREA), produzida pela jornalista Simone Bobsin. Ele falou sobre sua trajetória, sobre o mercado e sobre a profissão.

“Arquitetura é manifestação cultural.
Se assim não for, estaremos somente empilhando tijolos.”

 

De grande espírito colaborativo, André foi  professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFSC (1979-1995), foi presidente do IAB/SC (1982-1983), representante no Conselho Superior do IAB/DN (1982-1990), foi um dos fundadores da AsBEA-SC e seu vice-presidente (2009-2010), grande incentivador do Movimento Traços Urbanos, criado em 2016, e sempre manteve-se atuante nos debates sobre a cidade, inclusive contribuindo, voluntariamente, para as discussões sobre o Plano Diretor de Florianópolis. Em 2018, recebeu a Medalha do Mérito Virgílio Várzea, uma homenagem da Assembleia Legislativa de Santa Catarina por suas relevantes contribuições.

Conheça um pouco da sua trajetória, seus grandes projetos e dos seus pensamentos na entrevista que ele concedeu a mim para a publicação Grandes Nomes da Arquitetura Catarinense (link para a edição), lançada pela Santa Editora em parceria com a AsBEA-SC em 2015.

 

Um olhar sobre as escalas

Apesar de intitular-se apenas como um “colaborador, um partícipe”, de importantes projetos em Florianópolis, André Schmitt sempre assumiu papéis fundamentais nas discussões sobre o futuro da cidade. “Sou um desenhador urbano”, diz. Envolvido como poucos com as causas que abraça, ele mantém viva a esperança de qualificar a Ilha de Santa Catarina.

 

Diante da imponente maquete do projeto do Parque Metropolitano Dias Velho – Aterro da Baía Sul, o arquiteto e urbanista André Francisco Câmara Schmitt revela a possibilidade de uma nova Florianópolis. Há quase vinte anos, ele e mais oito colegas debruçaram-se sobre a cartografia do centro da Capital, com a assessoria de nove consultores das mais diferente competências, para estudar uma forma eficiente e viável de reaproximar o mar do cotidiano da população. Vencedora do Concurso Público Nacional de Ideias realizado em 1996 pelo Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis (IPUF) e pelo departamento catarinense do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB/SC), a proposta foi além: indicou as melhores alternativas para o transporte hidroviário, aproximando os modais para qualificar a mobilidade urbana, previu novas áreas de lazer e apontou espaços nobres para construção de empreendimentos corporativos e turísticos, com bares e restaurantes na borda d´água, dinamizando e qualificando toda a região. “Engavetada” até hoje, essa era uma ideia muito inovadora para a época, talvez, como outras sustentadas por André. Contudo, todas possíveis e no nível de excelência que a cidade merece.

 

GNAC / Sua atuação em Santa Catarina teve início em 1972 a partir de uma demanda da rede Plaza de Hotéis. Como surgiu essa oportunidade?

André Schmitt // Eu tinha uma empresa de maquetes em Porto Alegre, onde morava. Ajudava professores e colegas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul que entravam em concursos e fazia maquetes empresariais para o meu sustento. O pessoal do Plaza perguntou se eu queria vir para Itapema para cuidar das obras da segunda etapa do hotel e nem deixei eles terminarem a frase. Eu havia conhecido todo o litoral de Santa Catarina em 1964, no primeiro ano da faculdade, em uma excursão com mais dois colegas da Arquitetura e dois do Direito. Fomos de ônibus até Itajaí e percorremos o litoral até Torres (RS), a pé ou de carona. Levamos um mês e meio e eu fiquei encantado. No Plaza, foi uma grande experiência de canteiro de obras, erguendo marina, centro de eventos, durante dois a três anos. E foi a minha introdução na área do turismo.

“Não existe um prédio isolado em um terreno.
Quem tem olhar treinado, abre mais a escala.”

 

GNAC / O senhor diz que logo foi “descoberto” pelo empresário Fernando Marcondes de Mattos, que planejava um resort na praia do Santinho.

André Schmitt // Fui agraciado com essa oportunidade de participar de um projeto com tantas escalas. Chegamos a desenhar, por exemplo, até o banco Leme, do rancho do pescador! Começamos a planejar o Costão do Santinho com uma proposta para toda a praia, porque naquela época só existia a lei do plano diretor da área central de Florianópolis, permitindo apenas residências nos balneários. Assim, foi estabelecido que, para começar a pensar em qualquer projeto, seria necessário um plano de urbanização exclusivo para as pequenas praias que estão para o mar aberto, como Santinho, Galheta, Praia Brava, com menos de dois quilômetros.Depois disso, passamos para a escala do conjunto do complexo que ocuparia uma área de 1 milhão de metros quadrados no setor sul da praia. Dali para a escala da arquitetura e do design, voltando para a escala de paisagem, com planos de roteiro para caminhadas, como eu tinha feito na Lagoa da Conceição alguns anos antes.

GNAC / Quais foram os ganhos para o bairro a partir dessa intervenção?

André Schmitt // Primeiro, um espaço de 660 mil metros quadrados totalmente preservado e que, mais tarde, foi transformado na primeira RPPN, Reserva Natural do Patrimônio Natural, da Ilha de Santa Catarina. Uma autolimitação proposta pelo próprio empreendedor. Outro ganho foi o desenho da região, que deu um padrão de qualidade e de boa relação de ocupação para a praia. E isso depois continuou. Outros empreendimentos vão chegando e tentam se estabelecer com esses padrões.

GNAC / Pouco depois o senhor assumiu um cargo público nessa área, como secretário de Turismo de Florianópolis em 1986.

André Schmitt // Edson Andrino foi uma das primeiras pessoas que conheci na cidade, quando ele ainda era vereador (1973-1977 e 1978-1982). Eu o ajudava com projetos, com novas visões sobre a cidade. Quando assumiu a prefeitura, ele me convidou para participar do seu governo na secretaria do Turismo. E eu entrei em outro mundo.

Quando descobri esse fenômeno que é a relação do turismo com o espaço, comecei a estudar com afinco. De todas as atividades econômicas que existem, a única que faz com que a pessoa se desloque até o produto para usufruí-lo e consumi-lo é a do turismo. As pessoas são movidas pela atratividade existente no espaço físico, natural e cultural. Por isso, é preciso planejar a cidade para quem mora nela para que seja atrativa também para quem vem visitar. Você começa a entender que isso faz parte de um planejamento macro, que se reflete no espaço. Nesse período, também, decidimos por pastas próprias para Esporte e Cultura, áreas que integravam a mesma secretaria do Turismo. Criamos a Fundação Cultural Franklin Cascaes e uma das mais importantes ações foi o fechamento do vão central do Mercado Público para o trânsito de veículos. Ali instituímos o espaço cultural Luiz Henrique Rosa, a verdadeira sala de visitas de Florianópolis.

GNAC / Qual deve ser o papel do gestor para que a cidade se desenvolva com qualidade, em harmonia e em equilíbrio?

André Schmitt // O gestor público deve entender que a questão do espaço físico é fundamental. Planejamento é também saber integrar. É o maestro conduzindo para a orquestra tocar a mesma música. Não adianta cada secretaria planejar suas obras separadamente. Ele deve contar com uma equipe predominantemente técnica e respeitá-la, para que as questões técnicas deem base para as decisões políticas. Quem consegue manter a questão do espaço físico em pauta permanente vê a cidade se transformar.

GNAC / Que exemplos o senhor citaria?

André Schmitt // É o caso de Curitiba, com o Jaime Lerner (arquiteto e prefeito da cidade por três vezes, entre os anos de 1971 e 1992). E do Rio de Janeiro, com o Conde (arquiteto Luiz Paulo Conde, secretário de Urbanismo de 1993 a 1996 e prefeito entre 1997 e 2001). Também há experiências vitoriosas em Fortaleza (CE), em Minas Gerais e outras em Porto Alegre (RS). Em Santa Catarina, temos a experiência de Joinville e, mais recente, de Blumenau. Não conheço em profundidade, mas vejo o IPPUJ (Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Joinville) com um olhar sobre o território que não temos em Florianópolis.

GNAC / Medellín é uma grande referência?

André Schmitt // Eu me encantei pela cidade. O prefeito Fajardo (Sergio Fajardo, prefeito entre os anos de 2004-2007) resolveu problemas sérios, com diversos programas, mas a valorização do espaço público foi fundamental. Através da educação e do planejamento, com foco integrado em várias áreas, levou parques, bibliotecas, teleférico, mobilidade urbana e chances de emprego às regiões deterioradas, antros da criminalidade. Em poucos anos, transformaram Medellín e conseguiram fazer do espaço público um dos melhores da Colômbia e uma das experiências mais bonitas que temos na América Latina.

GNAC / Como deve ser a relação com a sociedade sobre as mudanças previstas para a cidade e os grandes projetos em curso?

André Schmitt // Se não trouxer à tona as propostas técnicas, a arquitetura, o espaço desenhado, maquetado, os leigos não têm como avaliar. Foi-se o tempo em que planejamento era fazer manchas e densidades coloridas sobre um mapa. Hoje eu tenho que entender de tudo, da volumetria à dinâmica – o que vai acontecer na região com aquela interferência. Quando se está sabendo as regras, com transparência, é mais fácil trabalhar. Isso são normas e o Estatuto das Cidades prevê isso. Ainda estamos aprendendo a importância do planejamento ser participativo. No entanto, temos de ter claro que a assembleia popular é alimentadora e até definidora, mas não prescinde da questão de projeto técnico e de desenho do território. Para as pessoas poderem participar de forma mais eficiente, mais qualificada, deve existir um projeto para ser visualizado. Em Paris, por exemplo, os projetos ficam em exposição no Pavilhão do Arsenal por três meses para conhecimento da população. Dos últimos que vi, o Rio Sena era tratado como elemento estruturador da paisagem. E aí vemos como a prefeitura de lá corre na frente, envolvendo-se no macroplanejamento da região e até em ações de desenhos específicos de mais de 20 pontos sobre o rio, que hoje estão em implantação.

GNAC / Parecia que algo nesse nível aconteceria em Florianópolis há quase 20 anos quando a prefeitura propôs o Concurso Nacional de Ideias para a revitalização do aterro da baía sul?

André Schmitt // Ganhamos e o projeto está engavetado até hoje. É uma pena. Considero esse um dos projetos mais significativos do qual participei, feito em parceria entre nove arquitetos, de diversas procedências – da universidade, do mercado, de estatais. Passamos mais de um mês discutindo, trabalhando o conceito, com a consultoria de nove profissionais, entre engenheiros, geólogos e economistas, e outros três meses desenhando. Em resumo: o aterro rodoviarista das décadas de 70,80, estabeleceu o desquite da cidade com o mar. Promover esse reencontro era algo importante para nós. Fizemos isso com dois eixos e dois movimentos. O eixo da antiga linha d´água, junto ao Mercado Público, cruzado pelo eixo da cidade ao mar, que inicia na Praça XV. E os movimentos: do mar entrando para ocupar uma parcela do seu espaço e, do outro lado, a cidade descendo sua trama até a nova linha d´água.

O eixo da Praça XV seria uma grande “rambla” (rua larga e com intensa movimentação de pedestres a exemplo de Barcelona, na Espanha) em direção ao mar, com bares e restaurantes abrigados da força do vento Sul e uma marina. As barcas do sistema hidroviário planejado entrariam nessa grande praça d´água criada no coração da cidade, desembarcando os passageiros próximo ao terminal central de ônibus. Integraríamos os sistemas, aproximando os modais. A trama da cidade ao mar era o segredo para viabilizar o investimento de 300 milhões de dólares que provavelmente seriam necessários, pois atrairia a iniciativa privada para a construção de hotéis, de estacionamentos subterrâneos, de edifícios corporativos, pois temos a fibra ótica passando ali.

Como isso aconteceria? Numa grande ação consorciada. Um projeto feito pelo governo com capital privado. Quando começamos a falar nisso, não se conhecia essa possibilidade, já bastante comum na Europa. Hoje ainda conseguiríamos fazer algo perto disso, compatibilizando alguns dos outros projetos que vieram depois. O aterro não vai ter vida se não for ocupado, com gente. Com essa proposta, o centro seria revigorado naturalmente e elevaria a autoestima da população.

GNAC / Há 45 anos no mercado, o senhor mantém um ritmo de trabalho intenso à frente do escritório Desenho Alternativo e ainda reserva tempo para “pensar” Florianópolis, participando das discussões do novo Plano Diretor e, também, na coordenação do projeto do Jardim Botânico.

André Schmitt// Nunca fiquei de fora, sempre colaborei. Identificamos regiões para a criação de microcentralidades, com áreas de maior densidade. Elas deverão ser estruturadas ao longo da SC 401, tanto para o Sul como para o Norte, até o Sapiens Parque, elemento revolucionário que será dinamizador do crescimento da Ilha. Lá deve sair a primeira das três estações do Jardim Botânico. Cada uma é uma “viagem” linda, planejadas por nós e pelas equipes da Marchetti + Bonetti, do Studio Methafora e da Biosphera, com a consultoria do arquiteto Nelson Saraiva da Silva e do botânico Ademir Reis. Sonhamos alto, do tamanho da nossa cidade. Asseguro que vale a pena batalhar por esse projeto inovador para Florianópolis.

 

“O espaço público não pode ser como algo que “sobrou” do privado.
Ele deve ser estruturador da cidade, qualificado e farto.”

 

“Convidados pelo poder público, há três anos vínhamos colaborando na elaboração do Plano Diretor de Florianópolis e tudo foi posto para baixo do tapete para se começar algo novo. Coloquei uma carga horária técnica grande para colaborar nesse plano. Agora, estão dando continuidade, mas perdemos um tempo precioso. É importante para os profissionais, para o mercado, que se estabeleçam logo as regras. A cidade está a reboque, sem premissas claras de trabalho.

Estamos, no mínimo, há cinco anos sem uma base de trabalho. O plano está defasado dez anos e não está estabelecido. Pior ainda, trabalha com emendas pontuais que vão atender interesses individuais. Isso vai deteriorando e afastando a possibilidade de termos acupuntura boa, irradiadora de coisas.” André Schmitt. 

 

  • Entrevista originalmente publicada na Grandes Nomes da Arquitetura Catarinense – Planejamento Urbano  (Santa Editora /2014)

 

 

Matéria atualizada em 13/09/2019

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